quarta-feira, junho 09, 2010

Quando a galhada alheia cansa

Por que a vida não é apenas um compêndio das vezes que você quebrou a cara – embora estas humilhações recorrentes não façam creditar o contrário – , quando você beija Sônia, parece que o mundo é outro; você é outro. Mas só por que a vida também não é um conto de contracapa de uma revista de fofoca, você devia saber que para Sônia você não é único; nem o único.

Então deixamos o lirismo do amor-imortal para o falecido Beethoven, e pintemos o impressionante e impressionista caos de sua vida, com água-forte – ou guache, o que tiver à mão – reprisando em detalhes o que você precisa lembrar sem o tempero condimentado do paixão, para entender por que os galhos não são enfeite de natal.

Primeiro: Não é natal. Em tempo, mal acabamos de passar o carnaval – calor, suor, cerveja e a complementação perfeita da galhada que jaz sobre sua cabeça.

Segundo: Embora os francos-cornos-felizes façam apologia ao modo de vida subalterno de quem aceita restos, não há nada mais humilhante – ainda mais para você, pequeno hobbit-bolseiro – que sorver restos como fossem eles o ambrosia dos deuses.

Dando já os nomes aos bois, ela se chama Sônia, codinome vaca, e não Ambrosia; comece pelos dados essenciais.

Oh, você nasceu desprovido da altura e beleza dos galãs de novela, a carteira de um deputado, a lábia dos malandros? E só por esses fatos relevantes entende a atitude libertina da mulher que ama? Já pensou se usaria a mesma desculpa para si, se fosse ela a baranga?

Terceiro: Primos não entram na partilha de bens de família alguma. Tampouco da sua, já que você nem morreu. Para constar, até onde se sabe, você não é esquimó, aqui não faz frio polar, e seu primo não teve que pedir duas vezes para levar sua mulher para o bosque. Esqueça os contos infantis, ele não é o lobo mau, nem Sônia a chapeuzinho. Chapéu quem usa é você, e ele não é vermelho.

Guarnecido dessa compreensão básica da realidade, siga o passo seguinte: regurgite seu otimismo. Ele é sua droga ilusória, que impede que você veja claramente o que está diante de si; quando a pegam pelo traseiro, não é excesso de carinho, quando a beijam no cantinho dos lábios, não é intimidade positiva. Eles não vão contar as ovelhinhas pulando a cerca, no meio da noite, quando ela sai sorrateira e volta quase amanhecendo. Você sequer mora numa fazenda, apesar dos bovinos que cria em casa.

É mister que se faça aqui, ainda, um pequeno revival acerca de sua graciosa relação, em pontos:

- Ela nunca lhe disse que o ama, ainda que como resposta as vezes seguidas que você o faz;

- Ela nunca ficou em casa nos fins de semana, nem atende o telefone depois de oitenta ligações suas;

- Quando você quebrou a perna, ela tirou férias;

- Sempre que sua mãe lhe visita, ela usa o mesmo vestido florido, fechado na gola;

- Em compensação, o resto do tempo, os vestidos que ela usam parecem feitos, em tamanho e comprimento, para crianças de doze anos;

- Ela detestava seus livros, e os culpava por sua distância;

- Mesmo quando você parou de ler, ela continuou os culpando;

- Depois de doar todos os seus livros, e sua leitura se resumir as revistas de fofocas de 1,99, ela continuou culpado seus livros, pois nunca passou tempo suficiente em sua casa, para perceber que eles não mais estavam lá;

- E a melhor de todas: ela sempre confunde seu aniversário com o do Pedrão.

Sabe-se lá porque.

Acreditamos em sua bondade, sua positividade, e principalmente em sua suprema boa-vontade. Mas até para nós, seus amigos, tão amigos que nunca pegamos Sônia - ignorando altivamente nossos paus diante do oferecimento dela - e que sequer usamos o chapéu, a galhada pesa e cansa. A sua.

Um comentário:

  1. Sônia, sim, como não?
    Aquela menina.
    Uma que tocava muito bem.
    E sabia francês.
    Natural.
    Estudou nos melhores colégios.

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