quarta-feira, junho 16, 2010

Amanda

Amanda, quando tinha senso de humor, era cáustico, daquele tipo que usa de ironia até para avisar que acabou o sabonete. Falta uma coisa no banheiro que tenho certeza que fará você querer que eu prepare a salada, diria ela, certa ocasião de um jantar informal em casa de Priscilinha. Além da adaga que fazia vez de língua em sua boca ferina, Amanda era dona de um corpo de arrasar quarteirão: mulheres invejavam sua falta de celulite e pele perfeita, homens desejavam suas curvas e seus sedosos cabelos. O problema é que a boca era indissociável dela.

Então, em uma segunda gorda, quando todos ainda se lamuriavam do findo feriadão, Amanda fez uma daquelas aparições dela, quadris no movimento ondulante usual, pastas e papeis diversos apoiados na cintura, olhares se desviando da rápida apreciação – também cotidiana – com medo de levarem uma patada logo de manhã, e ela vindo na direção da minha mesa, apavorei-me.

Daiana, quero falar com você.

Reparem que ela disse meu nome, sem nenhuma interjeição grosseira como lhe era de hábito. Duvidei por um segundo que ela se dirigisse realmente à minha pessoa – pasmada, naquele instante, sem vergonha alguma de estar.

Hein? Foi minha resposta.

Você tem surdez seletiva, Daiana?. Então jogou suas pastas sobre minha já abarrotada mesa e complementou oferecendo-se para me pagar um café.

Se eu fosse homem, ao passar pelas fileiras de bancadas do setor de finanças, com todos aqueles machos babando pelo corpo sexy de Amanda, e sabendo que todos ouviram ela me convidar para um café, eu teria feito o clássico sinal vou come-la logo mais. Só que até a forma correta da escrita prova que eu não sou do sexo masculino - ainda que valesse o pensamento, já que eu devia ser a primeira pessoa à quem Amanda chamava para um café – assim como prova que eu absorvo fácil a presença de espírito dela. Meus status iria às alturas.

Vou ser direta e franca, disse-me, assim que serviu-nos um café expresso. Sei que você é conhecida por ser sincera e afável, ainda que eu ache sua delicadeza com as pessoas uma grande e desnecessária puxação de saco. Bem, pelo menos eu acabara de me certificar não estar falando com um alien. O caso, continuou ela, é que preciso saber quem reclamou de mim para o chefe, na reunião passada, e sei que você não vai mentir. Então?

Na reunião que citava, e que ela não participou por estar de atestado, algumas pessoas um pouco, eu diria, envolvidas na tentativa de linchar Amanda para fora da empresa, fizeram observações acerca daquele comportamento levemente ignorante dela. A questão é que sua eficiência subjugava esse quesito, tanto que não era a primeira vez que acusavam-na.

Mas agora ela sabia. Sabia por algum motivo que me era alheio, mas só podia ser o chefe dedurando todo mundo em troca de cinco minutos a mais de intimidade com ela.

Oh, Amanda, você sabe que não foram uma nem duas pessoas, resmunguei, não querendo que minha voz saísse do café. Pretendia que ela não saísse sequer da minha boca, que Amanda sugasse meu pensamento, e assim o risco de ser eu a próxima na lista de linchamento reduzisse consideravelmente. Engoli uma bola seca de nervosismo, temendo a deslumbrante mulher em minha frente, temendo todos os outros que, unidos, poderiam fazer a merda acontecer. O café desceu rasgando a garganta.

Quero nomes, vociferou desarrumando os cabelos. Fosse eu um homem, teria nesse instante uma evidente ereção, provocada pela imagem selvagem que ela exibia. Deuses, pensei.

Está com medo que algum dos incompetentes descubra que você os delatou? Ou também faz parte da caravana?

Não neguei, disposta a colaborar se soubesse qual seria sua atitude. Perguntei sem preâmbulos: O que pretende fazer?

Botar esses implicantes em algum lugar que combine com suas dispensáveis personalidades, respondeu sorrindo.

Vai sujar com eles?

Só um pouco, para eles aprenderem a não mexer com quem está na sua...

Nunca a vi na sua, Amanda, falei sem pensar.

O mundo é engraçado, não acha Daiane? Ela não pareceu dar-se conta da minha afirmativa anterior, para meu alívio. As pessoas me odeiam, porque falo o que penso, sem medir que posso causar mal estar aos outros, quando eu vivo constantemente desagradada de tudo ao meu redor. Ela não me olhava, encarava a parede. Não senti tristeza em suas palavras, como se agora ela fosse me contar que a mãe morrera quando ela nasceu, e seu pai a criara com ex-presidiários. Tudo é lixo, continuou ela, e a gente só vale o quanto incomoda.

Enfastiada do monólogo e temendo o segundo ato, dei os nomes, como ela queria, e de camarote assisti Amanda fazer o inferno com a vida deles, dentro do escritório.

Estranhamente aquele dia marcou o início de uma proximidade entre nós duas. Talvez eu concordasse com sua teoria, afinal. Começava a me agradar a ideia de retaliação. E ela percebia. Gostosa a desgraça alheia, não? Disse-me ela, outra manhã no café. Tanto quanto você, respondi tentativamente.

Conto por S. Mr.S

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