segunda-feira, novembro 02, 2009

Contos da Nau da Morte I – Mirando a Morte

Dicamonte, acerte aquela nau. Aquela banheira boiante, que ainda teima em nos perseguir, inferno atrás de inferno, cidades inferiores cheirando a enxofre a quem damos o nome de. Sabia que o capitão, depois de assassinar suas três esposas, comer seus corações e chorar por dois verões, faleceu de causa desconhecida? E quem assumiu o navio não foi o imediato, foi o cozinheiro?

É o mundo das superstições, caro Dicamonte, que nubla a visão dos homens. Deram de temer o cozinheiro por ser ele a fatiar, temperar e fritar os corações das três esposas. No meu tempo, mulheres em navio é que, se dizia, traziam má-sorte, maus ventos, delírios à tripulação. Uma grande bobagem, na minha opinião. Agora, desvie esse olho solitário de mim e acerte o navio de velas púrpuras. Acerte no centro de seu casco podre, nas entranhas. Quero ver sangrar.

Não, eu não tenho certeza do motivo que levou o capitão a tal homicídio. Barbáries como essa, no nosso meio, onde um homem de espada em riste não é analogia de ereção, e sim guerra seguida de morte, são comuns e, decerto, passáveis. Alguém conjectura, uma delas o traiu com o imediato, as duas outras sabiam e nada disseram, ele limpou sua honra com sangue, e passa a ser a verdade, não o boato. Mais comum, você sabe melhor que qualquer outro, é arrancar os olhos dos curiosos, as mãos dos saqueadorezinhos de merda, o pau daquele que lhe rouba a mulher. O que invalidaria a história da traição do imediato, pois quer me parecer que ele ainda tem o meio das pernas preenchido.

No meio, Dicamonte, no meio. Estou exausto da perseguição. Sabe-se lá o que pensa o capitão-cozinheiro, talvez que tenhamos uma carga extra de cominho, no fundo do navio. Claro que se tivesse investido contra nós, eu já teria lhe arrancado pessoalmente as tripas com minha adaga. Até então só fizeram nos seguir, lentamente, e sem alarde. Não creio em fantasmas porque, por todos os deuses inexistentes, minha alma já está corrompida até do avesso por difamação e desforra. Se eu a tenho, o que desacredito cada vez que me deparo com um cadáver – o que tem sido deveras comum desde que pegamos aquela porrada de ouro da coroa – vazio e sem marca de perdão. Esses dois olhos do seu capitão vêem, Dicamonte, vêem que estamos todos destinados a profundeza dos mares, enroscados às algas, sem salvação. O diabo que nos carregue, se ele tiver forças.

Mesmo o Diabo é uma alegoria, e que se dane o que diz Metriz! Metriz mal sabe distinguir entre rum e água do mar! Você tem visto alguma divindade, ou malignidade por esses dias? Cada vez que corta uma garganta, pensa no poder da salvação e se benze, seu decrépito? Acorde para a realidade, pirata imprestável! Nem mesmo consegue mirar aquela nau, que está mais cheia de piratas esfomeados, loucos de ganância, que de almas atormentadas que vingarão um navio despedaçado em outra vida! Toda morte é o fim, energúmeno! Fim! Agora mire com essa porcaria de canhão para lá e a acerte no meio, como ordenei!

Não a morte, besta!

A nau.

Acerte a nau.

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